Text introdutório ao livro "Tipografia", de Paulo Heitlinger O que é a tipografia? A mais breve, mais clara e mais coerente definição é a de Indra Kupferschmid: "Existem apenas três métodos de fazer letras: escrevê-las, desenhá-las ou produzi-las tipograficamente". Nesta fórmula simples, o presente livro descreve como chegamos ao processo de produzir e usar letras tipograficamente – e como essa invenção beneficia a nossa cultura visual. Contudo, este livro não foi escrito só para os que produzem, para os profissionais e estudantes que elaboram documentos ou trabalham em design editorial e publicitário. Como o tema ainda não foi tratado abrangentemente por autores portugueses, tento proporcionar uma visão da tipografia com uma perspectiva mais alargada, que possa interessar quem aprecia temas culturais, estéticos e históricos. Para além de escrever sobre a funcionalidade das letras, também discuto a estética e a expressividade dos caracteres tipográficos, pois como escreveu o poeta e tipógrafo Roger Bringhurst, «letterforms have tone, timbre, character, just as words and sentences do». Estas maravilhosas propriedades – sonoridade, timbre, personalidade – levam a que uma pessoa, quando em contacto estreito e prolongado com muitas letras, mais cedo ou mais tarde se apaixone pelas formas mais sedutoras e atractivas... Pouco antes de escrever esta introdução, pude ver um documentário sobre o fotógrafo Henri Cartier-Bresson. Falando do seu ofício, o mestre usou a bela expressão «goût de la forme». Então concluí: a tipografia deve ser o gosto pelas formas das letras. Esse gosto pelo sabor da tipografia já o sinto há muito tempo; já nem sei quando fui pela primeira vez atraído pela sedução que emanam as letras. Mas sei que gostaria de contaminar outras pessoas com esse especial prazer que é descobrir, conhecer e aplicar belas, eloquentes e expressivas formas de letras. A prática da tipografia não é apenas um gozo e um prazer intelectual e estético; é sempre uma actividade social, de comunicação. «A tipografia está por todas as partes» é um chavão e um lugar-comum, mas não faz mal repeti-lo aqui. Por toda a parte vemos tipografia: jornais, revistas, pan­fletos, prospectos, logótipos, cartazes, cartas, anúncios, catálogos, rótulos e etiquetas, bilhetes, horários, tabuletas, embalagens, ecrãs de televisão, monitores de PC, aparelhos de telecomunicação, terminais de Multi­banco, aeroportos, estações de transportes. Estamos rodeados por tipografia, que todos os dias e a todas as horas nos comunica mensagens, notícias, publicidade, impulsos, trans­acções, conceitos e ideias no mundo alienado, superlotado, hipercivilizado e saturado que é o meio ambiente da maioria de nós: cidades repletas de tipografia. A tipografia envolve a forma de comunicação mais importante para muitos seres humanos: veste e multiplica a palavra escrita. É de tal maneira omnipresente que por vezes nem a vemos conscientemente, o que não é necessariamente algo negativo; pode até ser um sinal de que as coisas «funcionam como devem» (pelo menos, para quem a manda fazer). Entre nós, portugueses, a tipografia muitas vezes não «funciona como deve», pois sofremos de um notório atraso em relação a outros países. Um leitor despreocupado poderá estar (mal) habituado a consumir qualquer letra de qualquer feitio, sem se aperceber das suas características, sem se irritar com a fealdade ou desproporção das suas formas. Mas esta atitude não serve para os técnicos – os directores de arte, designers de comunicação e editores –, aqueles que moldam os sinais, as mensagens, os textos. Problemas com a terminologia Neste livro uso deliberadamente termos ingleses, como «typeface designer», porque no nosso idioma é raro o emprego da nomenclatura tipográfica, não porque em Portugal não exista uma terminologia profissional tipográfica, mas porque é muito pouco usada. Ou então porque muitas vezes os termos são usados com um sentido diferente do empregue em outros países –  motivo para desentendimentos e confusões. Dificuldades deste género aparecem já com o próprio termo «tipografia» – que para a maioria dos portugueses define uma empresa gráfica onde se imprimem documentos, brochuras, livros, cartazes, mas que para a maioria dos outros europeus significa a tecnologia e o saber necessários para desenhar, produzir e usar letras. Quem em Portugal diz tipógrafo está a pensar, na maioria das vezes, num impressor. Em busca de uma concepção contemporânea, exacta e precisa, multiplicam-se os mal-entendidos. Vejamos: o que nós chamamos «artes gráficas» nunca foram arte – foram e são um ofício técnico, uma profissão. Os profissionais das artes gráficas não são artistas, mas têm de saber trabalhar com o know-how acumulado há séculos, o saber que já orientou os profissionais da composição manual, da mecânica e da impressão no prelo artesanal. Estas artes degradaram-se. O legado que ainda hoje conservam alguns gráficos da velha guarda – os especialistas da composição manual ou da composição mecânica de tipos de metal – vai inevitavelmente perder-se nos próximos vinte anos. Por minha vontade, esses profissionais experientes seriam subsidiados como museus vivos, assim como se subvencionam no Japão os respei­tados artesãos dos ofícios tradicionais. E os jovens? A maioria dos jovens profissionais portugueses do design editorial e da paginação digital trabalha por intuição, mas sem conhecimentos de base. Para eles, a tipografia é uma grande icognita. Infelizmente, 99% deles também nunca puseram os pés numa oficina tipográfica. Os primeiros profissionais do design editorial português apareceram há 20 ou 30 anos e os jovens talentos são ainda muito raros. Tipografia ao alcance de todos? A tipografia que discuto neste livro representa um legado comum a todos os leitores da chamada cultura ocidental. Creio que a riqueza de formas, de estilos e de conceitos contida no enorme universo tipográfico de hoje deve pertencer conscientemente à cultura lusi­tana, ao design de comunicação português. O conhecimento profundo e detalhado das centenas de tipos hoje disponíveis é essencial para produzir comunicação textual e visual com qualidade. Comuni­cação com qualidades estéticas, emocionais e intelectuais, perfeitamente adequadas à expressividade, à beleza, à legibilidade dos textos e a uma boa arquitectura de informação. É benéfico e útil integrar de modo consciente a ri­queza das variações estéticas e funcionais da tipografia – em vez de usar distraidamente as letras que «aparecem» no ecrã do nosso computador. O Desktop Publishing definiu novos paradigmas que exigem uma mudança de atitude; não podemos continuar a ignorar que a boa tipografia é uma contribuição decisiva para um design gráfico funcional e estético. Temos de pôr em dia os nossos conhecimentos de tipografia. Temos de nos mover ágil e conscientemente dentro do mundo da tipografia internacional. Se assim não for, nunca conseguiremos adquirir o grau de excelência que o desenho de letras e o desenho gráfico atingiram e mantêm noutros países da Europa, alguns deles tão pequenos como o nosso. Não será necessário discutir muito para chegarmos ao consenso que «a tipografia é uma base essencial do design gráfico». Mas poucos docentes das escolas de Design portuguesas leccionam esta disciplina, e poucos estudantes a aprendem por si mesmos, apesar de disporem de uma ferramenta extremamente útil: a Internet, com muitos web-sites, blogs e newsgroups especializados nesta temática. Esta letargia face aos assuntos tipográficos não tem de ser o nosso destino de país periférico, como frequentemente se desculpa a falta de curiosidade e iniciativa em Portugal. Países que foram colónias ibéricas e que continuam a ter economias deficitárias e graves problemas sociais (semelhantes aos nossos) apresentam hoje uma prática tipográfica superior à nossa, tanto em qualidade e criatividade como em quantidade! É o caso do Brasil, do Chile e da Argentina, por exemplo. Os especialistas portugueses que desenham fontes contam-se com os dedos de uma só mão. Mas o pior não é que sejam poucos, o pior é que quase ninguém fala deles e do óptimo trabalho que fazem... Quando comecei a leccionar no Curso de Design da Universidade do Algarve, em 2003, as carências que aí (e não só na UALG) observei aguçaram-me a consciência: temos de encontrar rapidamente meios para colmatar esta falta de know-how. O presente livro é uma tentativa de agir nesse sentido. Para atenuar algumas deficiências crónicas no conhecimento e na aplicação da tipografia em Portugal, este livro vai tentar transmitir os mais essenciais e mais básicos factos sobre a evolução e a aplicação das letras. Em breve virei propor outra publicação, complementar a esta: um Manual Tipográfico, com ênfase nas regras de composição e nas boas práticas tipográficas. Tipografia digital, mas não sem raizes Desapareceram já quase todos os tipos de chumbo; há que procurar nas mais longínquas vilas do interior de Portugal para encontrar, em pequenas oficinas tipográficas, caixas de composição com o seu recheio de tipos metálicos. Também já não trabalham as fotocompositoras, as primeiras máquinas para «fazer texto» que conheci, há cerca de 30 anos. Hoje a tipografia é tipografia digital; sucede no PC e no Mac, moldada com software de paginação e ilustração. Mas, por ser digital, a tipografia não deixou de ser ofício, de necessitar do saber profissional para produzir, correcta e esteticamente, informação com letras, números, símbolos e demais formas – com a ajuda de uma bem treinada intuição estética e aplicando as regras do design editorial. O que outrora era feito manual ou mecanicamente é hoje obtido no computador. Então para quê insistir no elemento histórico, parte importante deste livro? Porque a tipografia é um continuum, uma série de aprovações, reprovações e reafirmações de padrões que estão em vigor há 2 mil anos. Os revivalismos, processados em ciclos mais curtos ou largos, são um motor essencial da evolução da estética tipográfica. Quem começa a aprender a fazer layouts e composição com programas de paginação imedia­tamente se vê confrontado com dúzias de termos técnicos, todos eles oriundos da tipografia clássica da era dos tipos móveis – outra boa razão para travar conhecimento com a evolução histórica dos tipos – os tipos móveis e os tipos digitais. Paulo Heitlinger